quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O Bricoler by Liz Mercadante

Share it Please

O Bricoler


de Liz Mercadante



Estranho que de uma convivência de trinta anos, tenham restado dele apenas duas imagens superpostas. Eu muito pequena, cabendo inteira no espaço de seu abraço. A barba por fazer me raspa o rosto, é a primeira vez que experimento essa sensação ao mesmo tempo desconfortável e de intenso prazer. Ali, naquele refúgio, nada poderia me colocar em risco.


Depois, essa barba cresce, é branca e longa, até que um dia ele a corta e seu rosto fica macio e liso. É assim que me lembro dele nos últimos anos de sua vida. Chapéu, sempre, óculos escuros, terno, a inseparável bengala.
Todas as manhãs ele desce os dez degraus que levam à rua e dá sua caminhada pelos lixos. Com a ponta da bengala apalpa e separa, lançando o olhar experiente aos tesouros que vai descobrindo e recolhendo com gestos rápidos. Pequenos objetos somem dentro da sacola de plástico cuidadosamente montada e costurada com os saquinhos que sobraram do leite. Ou uma outra qualquer roubada de alguma loja.


Depois dessa triunfante expedição, ele retorna ao apartamento, fecha-se em seu quarto onde já há muitos anos dorme sozinho, troca o terno pela camisa de flanela xadrez, dobra com cuidado o lenço de seda branca que usou no pescoço, e então senta-se ante uma infinidade de vidros e latas de todos os tamanhos, cada qual contendo o fruto de sua coleta diária.


São caixas vazias de fósforos, pedaços de fio e de barbante coloridos, latas, pedaços de tecido e de couro, botões, parafusos e pregos, restos de arame, restos de brinquedos, de madeiras, de vidros, e os mais estranhos objetos: porta-retratos quebrados, canetas esferográficas vazias, brincos sem par, tampinhas de garrafas, restos de papelão.


Quando morreu, enchi mais de trinta sacos grandes de lixo com o conteúdo de seus vidros e estantes. Enquanto as lágrimas escorriam por meu rosto, lembro-me de que pensava na festa que alguém como ele faria se pudesse encontrar em alguma esquina aqueles despojos.


Hesitei antes de enfiar no saco seus apitos e as varinhas de todos os tamanhos, com pedaços de pano amarrados à ponta, que ele usava para espantar moscas. Deitado, media a distância do inseto e escolhia sem pestanejar aquela que se adequasse ao alvo. Pouco errava. Ele tinha uma prática de anos.


E os apitos eram para chamar minha mãe.


Durante meus dez anos de análise percebi todos os esforços que fez meu analista para que eu invertesse o espelho de olhar o passado. Diversas vezes entendi, por trás de sua cuidadosa sutileza, a pergunta embutida: não vê que foi a sua mãe que coube a parte mais dura?


Sim, eu via.


Foi minha mãe quem carregou sozinha a barra de conduzir a família quando ele desistiu de tudo, trancou-se naquele quarto coalhado de lixo e ali viveu por quinze anos, até morrer, falando com suas mulheres — ela e eu — apenas o trivial. E assim mesmo havia o apito, para economizar o chamado que obrigatóriamente o faria pronunciar o nome dela.


Recusando-se a compreender as leis que regiam as coisas, ele nunca tinha pago aposentadoria, nem se preocupado em legalizar seus negócios. Ao fugir do convívio social, acreditara que o dinheiro recebido pela venda da última casa de comércio que possuíra — aquele armazém que para mim foi o primeiro parque de diversões — seria suficiente para nos manter, a ele e a nós duas, até o final dos tempos.
Não foi. Em menos de dois anos minha mãe se matava vendendo roupas, pegando bicos de costura, desfazendo-se de suas jóias e eletrodomésticos, recorrendo a empréstimos e à boa vontade de parentes.


Sim, eu via.


No entanto, jamais consegui inverter o curso de minhas sensações.
Aqui dentro, na região mais secreta de meu ser, onde as coisas doem ou deixam de doer depois que cicatrizam, o que ressoa sempre, o que me sustenta em momentos de profunda solidão, é sua voz erguendo-se de repente, calando a ladainha com que minha mãe sistematicamente me torturava, por horas a fio, ora criticando minhas amizades, ora se opondo a meus planos de fazer isso ou aquilo, ora num carrossel de lamentos e angústias e cobranças que me arrasavam e me faziam pensar em querer morrer. Era sua voz que a mim se estendia, que me envolvia como um casulo de solidariedade, que me ensinava o sentido da cumplicidade. "Chega, ela já entendeu." Só isso. E bastava para que cessasse aquele círculo de ferro em minha volta, para que eu de novo pudesse respirar, para que a esperança ressurgisse.


Em seu obstinado silêncio, em sua desistência do mundo, meu pai jamais deixou de ter sobre mim um olhar atento. Não se importou muito com minha sobrevivência física — ele jamais quis saber se havia ou não comida em casa, se o dinheiro seria ou não suficiente — mas soube, sempre, quando me faltava o ar.
Entre esse menino e esta menina nunca houve distância nem estranheza.


A filha do Bricoler também guarda seus sacos de afetos, lembranças, cenas, pedras, conchas, títulos sem uso, bijuteria quebrada, cartões-postais, fotos rasgadas, pedaços de palavras ouvidas, pedaços de palavras nunca ditas, pedaços. De vez em quando junta tudo e deixa que água & sal lave e leve.


Liz Mercadante
redcat@ocaixote.com.br
https://www.facebook.com/profile.php?id=100001197422479

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Followers